segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Avatar

Será que, quando chegar a hora, nós humanos vamos colocar os pés em outros planetas da mesma forma como os europeus os colocaram nas Américas, durante o século XVI? Será que, ao explorarmos outras dimensões do Universo, deixaremos de lado atitudes de paz e de integração aos ambientes visitados, para darmos prioridade a busca de riquezas e ousadia, assim como o fizeram, naquele século, portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses, franceses e tantos outros caçadores de aventuras, conforme tão bem retratou Sérgio Buarque de Holanda, em seu “Raízes do Brasil'? Será que nos lançaremos ao espaço como verdadeiros colonizadores, cerceando liberdades e tratando nativos de forma subjugadora?


Pelo menos essa é uma reflexão que James Cameron traz a seu público, através do filme “ Avatar” seu primeiro longa-metragem, após o fenômeno Titanic (1997). Sou um daqueles retardatários que, até ontem, ainda não tinha assistido ao filme. E, de cara, compreendi porque a criação de Cameron, em apenas seis semanas, após entrar em cartaz, nos cinemas mundiais, se tornou a mais rentável de todos os tempos, porém não conseguiu sensibilizar o poder hollywoodiano, que apenas ratificou, no Oscar deste ano, as indicações de Melhor Fotografia, Melhor Direção e Arte e Melhor Efeitos Visuais.

Quando o assisti, ontem, vi que o filme é tudo aquilo que disseram dele, em suas duas horas e 46 minutos de duração. Para o grande publico a estória agrada pela existência de um casal que encontra impeditivos para sua união, fórmula que Cameron também utilizou em seu Titanic, através dos personagens vividos por Leonardo de Caprio e por Kate Winslet.

Por isso mesmo prefiro, ao traçar impressões sobre o filme, me valer de minhas anotações sobre aspectos político-sociais e culturais que estão subjacente à mensagem de Cameron.

O primeiro deles é o fato de ele questionar a forma imperialista e colonialista com que seu País vem atuando na política internacional, assim como já o fizeram os colonizadores da América. Certamente um tema que não agrada aos poderosos de Hollywood.

Senão vejamos:

A narrativa de Cameron se passa no futuro, quando seu Pais resolve invadir Pandora, uma lua que orbita ao redor de Polyphemus, habitada por humanóides azuis de 3,5 metros de altura, chamados de Na´vi. O subsolo dessa lua é rico em um mineral chamado unobtainium. Cinco anos antes, do momento em que se passa o filme, esses colonizadores haviam feito uma tentativa de “domesticar” os nativos de Pandora, ensinando-lhes a língua inglesa, através de uma missão catequizadora, assim como fizeram os colonizadores aos tempos de Colombo, com o propósito de que esses nativos viessem a “colaborar” com os invasores, retirando-se das áreas onde estão assentados e onde se encontram as maiores jazidas de unobtanium, cuja cotação da época é estimada em Us$ 20 milhões de dólares por quilo.

Mas os primeiros contatos, em lugar de levar os na'vis a se tornarem afáveis e submissos, os fez arredios e hostis, ao perceberem o perigo que tal invasão poderia significar, não só para eles, como para a quebra do equilíbrio do ecossistema existente.

Por isso, agora chega a vez de uma nova missão ser enviada em busca dos na'vis, com o propósito de fazer com que as resistências fossem demovidas.

A presença invasora era composta por um contingente expressivo de militares, para garantir o poderio bélico, sob o comando do coronel Miles Quarithc, que não hesita em destruir a população local, em busca daquele minério, além da pesquisadora Grace Augustine (Sigourney Waver), que chefia uma equipe de estudos do meio ambiente e atua com os Avatares, seres com aparência de Na'vi e DNA de humanos, e que recebe a missão de se aproximar dos nativos para aprender seus hábitos e costumes, visando facilitar as estratégias de invasão do território.

Para a missão, contam com a ajuda do ex-fuzileiro e paraplégico Jake Sully (Sam Worthington), que, seduzido pela promessa de voltar a andar de Quatrich, aceita tomar o lugar do irmão gêmeo Tom, que havia sido treinado para essa missão, porém morrera dias antes, onde Jake passa a usar o mesmo DNA para interagir com seu Avatar.

Jake Sully, Grace e seus companheiros entram em câmaras especiais, para se colocarem em estados alterados de consciência, onde podem, dali, “entrarem” nos corpos dos Avatares, para dar-lhes vida. E é nessa condição que se dirigirão à região onde se encontram os na'vis para travar-lhes contato.

É nesse momento que o Diretor faz a sua segunda importante abordagem, ao retratar o território de Pandora todo coberto por matas, rios e cascatas, animais selvagens e inúmeras tribos, distribuídas ao longo de seu território. Cameron aproveita a sua obra de ficção-científica, para discutir os problemas ambientais porque passa o Planeta Terra, para questionar a sustentabilidade e a necessidade imediata de ações que levem a salvar Gaia, fazendo recriar, em Pandora, uma fauna, uma flora, costumes e tradições essencialmente ligadas a seus questionamentos, através de um realismo impressionante.

Assim como ocorreu com os ameríndios, os nativos viviam em tribos, usando arcos e flechas, eram desprovidos de quaisquer tecnologias, que pudessem melhorar suas vidas, sendo liderados por um cacique e por sua esposa xamã, simbolizando o poder material e o poder espiritual em união e cooperação. Usando a mente humana de Jake e o corpo de um Avatar, o enviado invasor penetra na mata utilizando a sua experiência de “mariner” para sobreviver na mata. Mas, em situação de perigo, acaba sendo salvo por Neytiri, uma jovem Na'vi, filha do pajé e da xamã que dirigem a tribo.

A jovem, depois de salvá-lo do ataque de animais ferozes, resolve abandoná-lo na floresta, mas recebe um aviso dos céus, de que deveria guiá-lo e lhe dar atenção, acabando por conduzi-lo aos membros de sua tribo. De início, é hostilizado e ameaçado pelos guerreiros, mas a xamã resolve pedir a sua filha Neytiri para treiná-lo e introduzi-lo nos usos e costumes de seu povo.

Jake, que era um militar, tem, agora, a tarefa de se tornar um guerreiro. Há, entre os dois, uma notável diferença: o militar americano, levado por seu patriotismo, deve lutar e matar usando uma obediência cega, inqüestionável, uma verdadeira máquina de matar, desprovida de discernimento. E, agora, tem que aprender a ser um guerreiro, que possui livre arbítrio, consciência, sabedoria e independência, para agir somente através de seu juízo de valores, sabendo preservar a vida, o equilíbrio e a dignidade frente às adversidades que a vida lhe impõem.

De início, Jake mostra um coração forte, mas comportamento de criança, o levando a ao perigo frente a uma matilha de animais ferozes, semelhantes aos lobos. Para salvá-lo, Neytiri acaba matando um dos animais e depois lamenta por sua morte, já que ela simboliza um desequilíbrio das forças da natureza. Cameron retrata, nesta cena, o medo de um ser humano se encontrar em ambiente hostil e desconhecido, fator que leva animais selvagens a investir contra ele, ao perceberem o desequilíbrio em seu estado anímico.

Certamente um guerreiro passa por tal situação de forma diferente, pois consegue dominar o seu medo, respeita o seu oponente, porém é detentor de confiança em si e determinação para sobrepujar seus adversários. Com isso, Jake vai compreendendo e percebendo as diferenças entre um mariner e um guerreiro, onde arriscar-se e lançar-se às dificuldades constituem atitudes inerentes à condição que luta para alcançar.

O guerreiro está perfeitamente integrado ao ambiente em que vive, conectado com suas divindades maiores, representadas, no filme, por Eywa, e pelas forças da natureza, está subordinado a seu líder, porém possui discernimento e livre-arbítrio para agir segundo suas próprias convicções, sem, contudo, deixar de fazer parte a sua tribo.

É por isso que há a rejeição inicial dos na'vis ao novo integrante, pois ele já carrega consigo medos e vícios que o detém frente as adversidades, algo difícil de fazer remover, assim como encher um copo que já está cheio, conforme diz Neytri. Para seguir aprendendo, Jake tem que esvaziar-se de tudo, e somente não opor resistência às novas situações a que lhe é colocado a prova. E, também aos poucos, vai ganhando coragem e capacitando-se para viver a sua nova condição.

Os nativos ou os omaticayas mantém a Árvore Sagrada, que esconde um campo de fluxo de energias, que lhes dão sabedoria e consciência unitiva. É nela que Jake vai concluir o seu aprendizado, ao receber, em cerimônia xamã, a sua condição de guerreiro, sob as bençãos de Eywa. E também os cumprimentos de sua nova tribo, onde cada guerreiro encosta a sua mão nas costas de outro, à sua frente, formando uma grande mandala humana, representando, simbolicamente, a ignorância do ser humano frente aos mistérios da vida.

É assim que Cameron vai construindo um mundo de contrastes, onde, de um lado, um povo invasor, possuidor de um poderoso exército, aparelhado pela mais adiantada tecnologia e alimentado pela ambição extrativista, consegue encontrar um povo rudimentar, porém detentor de um grau elevado de espiritualidade, devidamente conectado às energias que alimentam aquela natural e diversificada forma de existir.

Para os invasores, os nativos são macacos azuis, selvagens repugnantes que merecem ser destruídos. E também é assim que Jake vive a sua crise existencial, onde valores humanos de sua civilização imperialista e materialista se opõe aos valores holísticos e conservacionistas de seu novo povo, quando está na condição de Avatar. Jake acaba perdendo a confiança na'vi, quando ocorre o início das investidas bélicas dos colonizadores.

“Não sei mais quem sou”diz ele. Ele sente que a sua situação se invertera, quando descobre que ser Avatar é, para ele, um mundo real e ser humano paraplégico se torna o mundo dos sonhos. No momento de seu maior dilema existencial, os guerreiros do clã descobrem sua verdadeira identidade: um demônio em corpo falso. Jack só consegue reverter a sua situação quando torna-se Toruk Macto, o cavaleiro da última sombra, passando a reunir, em volta de si, guerreiros de todos os clãs para enfrentar o grande inimigo. A batalha se inicia: canhões, robôs e aeronaves, contra guerreiros de arco e flecha, em suas montarias ou a pé, numa luta aparentemente desigual.

Não obstante, os guerreiros omatycaias contam, ao seu lado, com uma força poderosa: a existência de um sistema de comunicação eletroquímico, que existe entre os animais e as raízes de mais de um trilhão de árvores. Esse sistema permite cerca de 10 milhões de conexões, formando uma verdadeira rede, mais conexões que um cérebro humano, que transmitem informações e dados capazes de neutralizar a força bélica dos invasores e que acabam agindo a favor dos nativos. A natureza se torna hostil ao grande exército.

Foi isso que Jack percebeu, de que a riqueza verdadeira não estava no subsolo, mas ali mesmo, pujante, sobre a terra, em sua volta, e que, para compartilhar toda essa vida, seria necessário entende-la e interagir com suas formas, usando, para isso, a força da mente, as energias eletroquímicas, a sua fé interior em todos os aspectos intangíveis de sua inteligência.

Vencido, o grande gigante volta para casa, tal como ocorreu no Vietname, ou, mais recentemente no Afeganistão ou Iraque, onde sua força permitiu a tomada do poder, porém não a conquista de um território dominado pelas guerrilhas e emboscadas, de inimigos invisíveis e capazes de atenuar o poderio bélico, a arrogância e a ambição.

Quanto a Jack, esse compreendeu, ao encontrar a inteligência superior, também achara a sua segunda chance de vida. Pois um guerreiro na'vi nasce duas vezes: uma quando vem a esta forma de vida e a outra quando se torna um verdadeiro guerreiro e passa a ser, para sempre, reconhecido como filho de omaticaya, a partir de sua coragem, determinação e sabedoria, em defesa de todas as formas de vida e em consonância com as leis de Eywa em toda a sua exuberante beleza.

Tudo isso sob as lentes de Cameron, que busca rever os valores convergentes de uma nova ordem mundial mais igualitária, entre os povos, sob os olhares complacentes da academia, que conserva a sua própria lógica.

É o enorme paradoxo hollywoodiano, que permite a sensibilidade de fazer-se questionar o status quo vigente, porém deixa de premiar e reconhecer uma obra que relativiza o american way of life, em tempos de Obama e Hilary Clinton, em meio a políticas de expansionismo e belicismo aculturadores e mantenedores da hegemonia de poder em favor das grandes potências, retratando, assim, a realidade vigente em pleno século XXI.

E a sugerir que tal condição fatalmente será levada a outros planetas, quando naves intergalácticas deixarem a terra, ostentando o seu poderia bélico, capaz de garantir a obtenção de riquezas, em lugar da convergência de valores e a harmonia das relações com outras formas de vida, sejam eles na'vis ou quaisquer outros, talvez assentados em suas árvores de sabedoria, como sugere Cameron, em seu Avatar.

Estreando em 18 de dezembro de 2009, o filme traz no elenco Sam Worthington, Sigourney Weaver, Michelle Rodriguez, Zoe Saldana, Giovanni Ribisi, Joel Moore, com produção de Cameron e John Landau, Roteiro de Cameron e fotografia de Mauro Fiore.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O romantismo está morrendo?

Pelo menos essa é a tese argüida por terapeutas e por psiquiatras: a de que o amor romântico está à beira da extinção, como resultado da evolução natural da sociedade, que passa a reservar ao amor uma condição menos avassaladora e reservando para o século XXI o nascimento de outras formas de sua manifestação.


O tema é tratado por Maria Fernanda Seixas, na edição do dia 8 de junho do corrente ano, veiculada pelo Correio Brasiliense. Maria Fernanda faz uma análise histórica do tema, remontando ao século XII, quando surge o amor cortês e começa a desenhar o conceito de romantismo, que se estabeleceu durante o século 19.

Segundo lembra, essa evolução acabou resultando, já na década de 1940, nas idéias românticas que formam as bases do matrimônio, na segunda metade do século XX. Segundo a idéia dominante no romantismo, os indivíduos passam a acreditar na conquista da felicidade pelo chamado “Complexo de Cinderela”, na qual a conquista da felicidade passa pelas mãos do outro.

Ao chegar o século XXI, a tendência é levar as pessoas a aprenderem a não mais delegar a própria felicidade ao outro, sem que isso sentencie o desaparecimento dos suspiros apaixonados. Mas levando indivíduos a buscarem o autoconhecimento e a individualidade, que significa, segundo esses profissionais, por quem os retrata, abandonarem conceitos como “cara-metade”, “felizes para sempre” e “almas gêmeas”. E onde passam a ser abandonados ideais baseados em expectativas, fidelidade e felicidade frutos da crença de que a outra metade possa completar a unidade para o alcance da felicidade eterna.

Com isso, segundo profissionais citados por Maria Fernanda, as relações entre indivíduos se tornam mais práticas e menos passionais, uma situação que passa a ser assentada a partir de uma nova lógica, que acaba com a contingência de as pessoas permanecerem casadas e infelizes. Para esses profissionais, essa combinação explosiva é resultado de um começo marcado por um impulso romântico.

O estudo é impactante e passível de gerar polêmica. Para aqueles mais otimistas, a situação é favorável porque permite maior liberdade e sinceridade dos envolvidos na relação, que passam a estar mais desimpedidos de cobranças, desespero e dor. Essa maior liberdade, no entanto, não implica no desaparecimento da corte, da oferenda de rosas ou cartas de amor, do amor cortês.

Seja lá como for, apesar dessa constatação, mostrada pelo referido estudo, há que se aprofundar as discussões, em busca de um aclaramento entre o que passa a ser abolido e o que passa a ser mantido a partir do advento dos novos paradigmas. Enquanto isso, o romantismo ainda permanece na preferência de muitos casais, assim como a expectativa de buscar o outro como forma de encontrar-se.

A questão é que a passagem de um paradigma para outro, uma necessidade mais atribuída do que real, depende do grau de equilíbrio de quem se encontra prestes a viver uma relação segundo os novos parâmetros. Ninguém dá o que não tem.

O que se verifica é a existência de um expressivo contingente de brasileiros que ainda encontram dificuldades de gostarem de si mesmos, acabam agindo de forma rigorosa, em relação a si mesmos e precisam trabalhar questões subjetivas que nem sempre são fáceis.

Deixar de lado o “Complexo de Cinderela” para optar pela busca de um autoconhecimento exige o alcance da maturidade, do equilíbrio, da auto-estima e, ainda, abrandar o egocentrismo para substituí-lo por uma postura mais altruísta. Implica em ser capaz de compartilhar, doar, acolher, abarcar, repartir, renunciar.

E, também, de um sentimento maior capaz de produzir felicidade e plenitude. Se o romantismo está mudando ou permanecendo o mesmo, durante mais algum tempo, uma questão sempre permanece subjacente à discussão: o amor é o alicerce de toda a relação e Ele ainda constitui a chave para este novo século, pois Ele permitirá que todos os desafios sejam resolvidos. Só o amor é capaz de dar equilíbrio e harmonia.

É válido pensar-se que, existindo o amor, a orientação interior leva à melhor compreensão de pensamentos e emoções e a um melhor equilíbrio corpóreo, mental e espiritual. O amor é resposta a tudo, a cada desafio, relacionamento, circunstâncias que envolve o ato do existir. Encontrá-lo é desvendar o segredo da vida.

domingo, 8 de agosto de 2010

Dia dos pais

Há cerca de 20 anos, uma então colega de trabalho me perguntou: quantos filhos você tem? Eu lhe respondi prontamente: nenhum. E ela, misturando um ar de indignação, com a minha resposta, e surpresa, me replicou: ué, mas eu vi você, num shopping, acompanhado de crianças. Como você me vem agora responder que não tem filhos?

Ao que lhe respondi: eu não tenho filhos, eles me têm. Porque agora, que estão crescidos, eles me dizem que roupa devo usar, me apontam meus erros, dizem o que devo fazer, expressam suas opiniões enfáticas sobre mim, com ar de quem já adquiriu suas experiências na passagem por esta existência.

E assim tem acontecido, ao longo dos anos. Eu os acolho. Eles me emprestam suas experiências de vida. E, hoje, enquanto eles reverenciam o pai que tem, eu me volto a pensar em todos aqueles que dividem comigo, neste momento, essa experiência maravilhosa de ser pai.

Apesar de minha idade, assim como experiências já passadas há muito, verifico e reconheço o quanto é difícil passar por esta experiência ao término de um século e o começo de outro, quando tudo é visto, revisto e examinado.

Os paradigmas mudam, o papel atribuído passa por questionamentos, as relações afetivas se transformam, a visão de quem é filho, hoje, muda a todo o instante, enquanto ficamos aferrados às velhas e conservadoras posições. Sempre foi assim. O novo surge para desbancar o velho, mas o velho também incorpora valores trazidos por esse mesmo novo.

Penso na experiência paterna. Se, no Brasil, as universidades injetam nas mentes acadêmicas um monte de informações que não serão utilizadas pelos seus discentes, e não há preocupação curricular de preparar seus alunos para a vida, mas, sim, para a tecnocracia e a tecnoburocracia, também não há um curriculum que inspire os indivíduos a chegarem à maturidade de passarem pela experiência de se tornarem pais.

Assim, a experiência de passar pela paternidade é mais um ato de experimentação, tentativa e erro, aplicação das experiências herdadas de seus pais, aplicação dos velhos e conservados paradigmas, dentro de uma sociedade que hoje quer uma nova ordem e uma lógica que agregue famílias e constitua a célula da sociedade.

Viver a experiência de ser pai é única e intransferível. Todo o pós adolescente têm uma idéia de como procederá, quando chegar a hora de passar de filho à pai. Mas, ao colocar em prática seus arquétipos, descobre que na prática toda a teoria é outra.

Ainda era uma criança, quando me colocaram às mãos um bebe, que possuía uma cor avermelhada, de tanto chorar e se esganiçar. Minha filha, quando pequena, se mostrou, desde cedo, birrenta, chorona e cheia de caprichos.

Berrava todas as noites e, pela manhã, nos primeiros raios de sol, muitas vezes encobertos pela neblina de um rigoroso inverno, ressonava enquanto seu pai tinha de levantar e seguir para o trabalho, com os olhos esbugalhados, olheiras na face e uma indisfarçável expressão de noite mal dormida.

E ainda, ao sair, ter de ouvir sua esposa dizer: “olha que amor, agora ela dorme como um anjo”. E foi assim que aprendi que um dos segredos da paternidade é uma grande e assumida disposição de renunciar.

Nem bem me preparava para trabalhar a minha personalidade imatura, e já tinha que pensar, pela assumida experiência de paternidade, em renunciar e conceder. Acho que esse é o grande segredo de uma bem exitosa passagem por essa função, que exige esquecimento de si mesmo e sensibilidade aos desígnios de criar e crear um ser verdadeiramente em formação, desde seu estágio semente até chegar à plenitude de sua existência.

Se fui bem sucedido? Sinceramente não sei. Mas certamente quando tiver deixado essa vida ensejarei meios e condições de ser avaliado e até mesmo receber uma nota por tudo aquilo que fui e também por tudo aquilo que não fui, enquanto era tratado pelo simples apelido de: “pai”.

Enquanto isso, volto-me ao passado e examino e faço cortes em minhas experiências. Em sua maioria, ao olhar a realidade de ontem, com os olhos de hoje, eu certamente as jogaria fora e, se pudesse passar pelas experiências novamente, as faria diferente.

Mas, entre as experiências que eu conservaria, está, sem dúvidas, uma passagem em que me lembro ter ido visitar o meu pai. Quando eu já tinha criado meus filhos e quando ele, já velho e vivendo sozinho, em outro estado, me recebeu como visita por dois dias. O via muito pouco, e, a cada vez, por períodos nunca superiores a uma semana, contra dois ou três anos de ausência.

Então, dessa vez, ele, pleno de saudades e farto de sua solidão, perguntou-me: “e aí, então, o que tens de novo a me contar'? E eu lhe respondi, secamente: “nada”. Sua expressão foi murchando rapidamente, e de uma condição facial exitosa por minha presença, foi, rapidamente, trocada por um ar de frustração e de desânimo. Ainda hoje penso o que deve ter se passado por sua mente: “puxa vida, eu esperei quase dois anos para vê-lo, ele me faz uma visita de dois dias, para depois seguir viagem que o levará a outro destino, fico sozinho todo o tempo e ele não quer me contar nada de sua vida”.

Esse aparente desgosto se tornou perene, pois nunca mais tocamos nesse assunto. Mas o que ele nunca soube foram as razões que me levaram a assumir aquela afirmativa, tão desestimulante ao seu modo de enxergar as coisas. Pois já acreditava que o essencial não pode ser expressado em palavras, mas sim em sentimentos. Não lhe havia visitado para falar de minhas emoções, mas, sim, para expressá-las, para lhe falar através de meu coração, que não pode ser dissecado através da mente, mas com sentimentos de gratidão e afeto.

Se ele não foi capaz, ainda, de entender o meu gesto, o deixo plasmado aqui, nessas linhas, para que elas cheguem até a eternidade e ele as receba agora, com os votos, nessa data, de todo o meu tributo à sua figura paterna, que me ajudou a me orientar por essa vida. Obrigado, meu pai, pois eu te amo.

Como diz um Mestre Ascencionado, que também é pai de muitos filhos: não agradeças a quem te ama, mas procures retribui-lo com o mesmo amor e com a mesma intensidade.

Afinal, a paternidade é um ato de amor e está associada à doação e à entrega.

Por isso, mesmo que eu seja, neste dia, homenageado não posso deixar de pensar em meus colegas pais. Fico pensando naqueles pais que hoje estão nas cadeias, nos leitos dos hospitais, nos manicômios, nas sarjetas, nos abrigos, nos asilos ou simplesmente desapareceram sem deixar pistas, como aqueles que ocuparam os porões da ditadura ou das trincheiras de uma guerra.

Daqueles que se encontravam em hora e lugar errados, como em Hirochima & Nagasaki, como no atentado de 11 de setembro, como nos terremotos do Chile ou do Haiti, como os tsunamis da Tailândia e do Japão (Hokaido), da Nicarágua, da Ilha das Flores (Indonésia), do Peru, da Nova Guiné ou do Oceano Índigo.

Lembro-me, neste dia de hoje, daqueles pais que viram seus filhos morrerem em seus braços, como em Serra Leoa ou Somália ou vitimas do caótico trânsito, como é o caso de Raul Mascarenhas, que teve que enterrar, recentemente, seu filho Rafael Mascarenhas, vítima de um atropelamento durante a madrugada de terça, 20, enquanto andava de skate com alguns amigos no Túnel Acústico, na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro.

Quantos pais anônimos viram seus filhos atropelados, prensados em ferragens ou arrastados pelas ruas, vitimas de assaltos ou balas perdidas. Quantos pais se esqueceram da missão divina que receberam, e acabaram por tirar-lhes a vida em lugar de amar, respeitar e incentivar um ser que é fruto de seus atos de amor ou de simples prazer imediatista, desprovido de responsabilidades e conseqüências.

A sociedade tem, historicamente, reservado aos pais os papéis de provedor, de esteio, de mantenedor, de poder paternal, dele derivando a conotação de austeridade, disciplina, ordem, respeito e muitas vezes intimidação, arquétipos que vem sendo mudados, gradativamente, derivados pelo divórcio, pela separação, por lares desconstituídos, mas, também, pelo ensejo de assumir o amor e a compaixão de levar uma semente a ser regada, cuidada para que um dia assuma a sua condição plena de existência.

Se pudesse, eu sairia, hoje, de casa para abraçar a todos os meus amigos, que são pais, a todos os que são mais filhos do que pais, a todos os pais que são mais filhos, a todos os que, ao passarem por essa experiência, conseguiram adentrar por uma das principais leis espirituais que regem a esta vida, a lei da renúncia, e, também, a certeza que, embora pais, somos todos filhos de um ato de criação. E que, ao darmos os parabéns aos pais humanos, quase nunca nos lembramos de um Pai, o maior de todos os pais: Deus, que é quem nos provêm não do que queremos, mas do que é necessário para nosso crescimento.

Talvez seja essa uma outra lição a ser incorporada por aqueles que assumem essa experiência. A de que um filho não é parte de nós, não pertence à nossa personalidade e não é a nossa imagem e nossa semelhança. Todo ato, criado através de nós, à medida que toma forma, vai, aos poucos, se distanciando, por suas experiências, construindo uma vida independente e soberana. Uma realidade às vezes difícil de ser assumida. Quando mudamos nossa percepção ortodoxa adquirimos mais condições de compreender que essa vida, que ajudamos a criar, somente se liga a nós pelo verbo, pela afetividade, em decorrência da maneira como as tratamos, em seus processos de formação.

Foi isso que aprendi e que hoje, nessa condição, me torna um ser completo e abençoado. Meus filhos, eu os amo, acima de quaisquer circunstâncias, e, se hoje me fosse dada novamente a opção de decidir, eu a tomaria novamente e repetiria tudo de novo, por todas as alegrias que resultaram de noites mal dormidas, de testas enrugadas e de decisões a serem tomadas, sempre envolvendo mais do que minha própria vida. Afinal, como dizia o poeta Fernando Pessoa: “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.

A você que me lê, neste momento, se já tiver vivendo ou passado por essa experiência, desejo-te um FELIZ DIA DOS PAIS.