segunda-feira, 23 de maio de 2011

Doação


Ao examinarmos a vida dos grandes místicos, como João da Cruz, Eckhart, Agostinho, Milarepa, Patanjali, Rumi, Teilhard de Chardin, Simone Weil, Maomé, Krishna e tantos outros, temos a sensação de que estamos a anos luz de atingirmos seus estados de consciência elevados. Muito embora sejamos considerados um povo essencialmente místico.

Quando nos encontramos em situação de perigo, quando somos acometidos de alguma enfermidade, quando perdemos o controle de alguma situação, quando sentimos medo, quando queremos controlar a nossa ira, quando recebemos alguma coisa adversa, não esperada, lançamos mão de orações.

Brasileiro ora para seu time ganhar o campeonato, tirar boas notas nas avaliações escolares, passar em concursos, arranjar bons casamentos, livrar-se das dívidas, ganhar em jogos de azar, resguardar segredos, desvendar mistérios, achar objetos, manter o emprego, sair do desemprego, voltar a ter esperanças, transformar sonhos em realidade.  

São todas formas espontâneas de manifestar a fé em um poder superior, capaz de aplacar nossas angústias, dar coragem e satisfazer nossas mais estranhas aspirações, que estão à margem de dogmas e doutrinas disciplinadoras. Uma boa caminhada sempre depende do primeiro passo e sempre nos conduz a uma estrada que nos faz passar por lugares desconhecidos.

Grandes místicos ou simples transeuntes, nas estradas da vida, se lhes fossem perguntado se gostariam de passar pelo que têm que passar, certamente abdicariam de suas viagens, principalmente aquelas que incluem dor e sofrimento. Mas esse preço sempre nos leva a nos despojarmos de tudo aquilo que não é essencial ao cumprimento de nosso destino. “E é morrendo que se vive para vida eterna”, como diz o final da oração de São Francisco. Essa frase não se refere especificamente à morte física, mas a superação de estados de consciência rudimentares.

Tenho ouvido, seguidamente, amigos me dizerem que ainda se consideram muito longe de onde querem chegar, classificando a sua condição existencial como primitiva em relação aos seres considerados mais evoluídos. Sempre acreditei que o melhor não é o ser humano esquecer do estágio em que se encontra e levantar a cabeça para identificar o ponto de chegada. Ao contrário. Devemos sempre procurar conhecer os erros e nosso ego, nossas teimosias em nos fixarmos em não valores que nos impedem de servir de instrumentos para um Pai maior e para uma verdade também maior.

Um Mestre Ascencionado enfatiza, em a sua ensinança, que o que nos detém no caminho são nossos erros. Segundo Ele, Deus em sua infinita bondade, verdade e profundidade, poderia vir a terra e ensinar seus filhos a não cometerem erros. Mas estaria pecando em uma verdade original, pois o correto acerto vem da vontade de acertar.

Somos parte de um universo sagrado e, assim, devemos seguir caminhando, doando-nos verdadeiramente com aquilo que temos de melhor. Devemos caminhar não na direção do oculto, mas sim na direção do sagrado. Através desta caminhada, compreendemos que nosso desenvolvimento depende de nossas relações com os demais. Todos, segundo o Mestre, aprendemos com todos. Algum dia chegaremos a compreender que todos partimos do mesmo ponto e para este ponto retornaremos.

O Mestre lembra que, perante o Universo, somos pequenos, legítimos, necessários e sagrados grãos de areia, que fazem toda a diferença quando se comprometem uns com os outros. Para explicar melhor a sua exposição, ele conta uma parábola a qual chamou de “O gigantesco passo do pequeno”. Conta o Mestre:

Certa vez, um nobre peregrino desejava conhecer a sua história e o seu destino. Então chegara a seu pai, um nobre samurai e lhe dissera: “meu pai, sinto que chegou a hora de partir em busca de mim mesmo. Mas preciso de auxílio para isso". Seu bondoso e sábio pai lhe respondera: - filho, se sentes que essa é sua hora, então o faça. Auxiliarei em teus passos. Poderás retornar aqui sete vezes, quando necessitares esclarecer alguma  dúvida. 

O pequeno peregrino entendera o recado de seu pai. Fora ao seu quarto, pegara seus pertences e depositara tudo em um saco, colocando-o em suas costas. Escolhera um cajado e se preparava para partir em sua missão. Mas eis que surge a primeira dúvida: para onde seguir? Por onde começar?

Joshua, esse era o seu nome, chegara a seu pai e lhe fizera o seu primeiro questionamento: "Pai! Quero evoluir, descobrir-me, em meu sagrado universo, mas não sei por onde começar." Seu pai lhe respondeu:  - o primeiro passo é descobrir a vontade, para decidir onde vais. Joshua obedecera a seu pai, decidindo caminhar para o Norte.

Depois de iniciar a sua caminhada, surge uma segunda dúvida: não sabia, Joshua, apesar de sua vontade apontar-lhe a direção Norte, se sua decisão estaria correta. Mais uma vez decidira retornar ao Pai para lhe pedir uma orientação: "Pai! Segui minha vontade, mas preciso ter certeza se ela é certa". Em resposta, ouviu de seu pai:

-  Depois da vontade, o segundo passo é descobrir a verdade. A verdade, filho, é algo que se procura, deixando-se ser achado. Joshua escutou claramente as palavras de seu pai, seguindo de novo rumo ao Norte.

Mas ele começou a ouvir o seu coração e mais uma dúvida começou a incomodar-lhe. Apesar da longa distância já percorrida, Joshua retornara ao seu pai para a terceira visita:

 - Pai, escolhi o caminho pela vontade, permaneci nele pela verdade, mas agora necessito da ação. Como faço? Onde a encontro? O que fazer? Seu pai lhe respondeu: - Filho, dei-te a resposta quando te disse como encontrarias a verdade. Qual foi?  A verdade se procura deixando-se ser encontrado. Joshua escutara com atenção e seguira rumo a um novo passo. O que encontraria se permitisse ser achado? Encontraria algo denominado de “missão”.

Com isso o Mestre quis dizer que o ser humano não escolhe suas missões. Mas são escolhidos por ela.

Joshua agora partira para encontrar a sua missão. E, para tanto, teria de deixar-se ser achado por ela. E assim seguiu em sua caminhada até que ouvira um ancião, à beira do caminho, lhe chamar:

- Jovem! Podes ajudar-me? E Joshua, compreendendo que sua missão lhe chamaria de pronto, respondera que sim. O que posso fazer para ajudá-lo? E o velho lhe respondera: “cure a minha perna, pois, com o passar do tempo, ela me tirou as forças para andar”.

Mas Joshua começara a ter mais uma dúvida: teria capacidade para curar a enfermidade do ancião? Mesmo assim começara a tratar daquela perna, para saber se tinha ou não aquele dom.

Alguns dias se passaram. A perna daquele ancião não melhorava. Então, Joshua tivera a quarta dúvida: “como seguir no caminho que me procurara, se não conseguia dar a resposta certa a esse chamado. E, assim, retornara pela quarta vez a seu pai: 

- Pai! Disse-me que a minha missão bateria à minha porta e, de fato, aconteceu: um ancião pediu-me que curasse sua perna. Isso eu não soube fazer. O que está errado? O que deveria ter feito? O que preciso fazer para resolver esta situação? Seu pai lhe respondera com um novo questionamento:

- Filho! Tentaste cumprir com teu propósito ao ter a tua missão te encontrado, ou tentaste cumprir com o propósito do ancião?

Joshua, um pouco atordoado, respondera ao seu pai que tentara fazer a sua parte da melhor forma, mas que isso não resultara na cura da perna daquele ancião. Então, seu pai lhe dera a quarta resposta: "propósito! Busca um propósito!"

Então Joshua retornou ao ancião: "Senhor, o que queres mesmo que eu lhe faça? Qual é mesmo o seu propósito, estando sentado neste chão?" O ancião lhe respondera de pronto: "sair deste lugar, filho, sair deste lugar. Mas essa perna me impede."  Então Joshua decidiu ajudar o ancião a cumprir com o seu propósito.

Sabia que era forte, que era valente, que tinha preparo. O que faria então? Carregar o ancião, em seus braços. Levá-lo até um curandeiro, que logo adiante estaria à espera. Lá chegando, recebera um jarro d'água e um pedaço de pão. E, então, Joshua tivera seu quinto questionamento. Seria o jarro d’água e o pão uma resposta ou uma recompensa do universo para aquela sua boa ação?

Voltara rapidamente ao seu pai para fazer-lhe a quinta visita e a quinta pergunta: Pai! Carreguei o ancião em meus braços. Fiz a minha vontade e também uni a vontade de meu coração com o propósito daquele velho ancião. Não pude curar sua perna, mas encontrei alguém, no caminho, que me encontrou; alguém, pai, que poderia curar-lhe a perna. Ganhei um jarro d'água e um farto pedaço de pão. Essa é a recompensa?

E seu pai lhe perguntou: filho, essa é a recompensa do universo pelo seu feito, ou a forma de o universo lhe dizer que precisas te manter forte para continuares a carregar? Ao que Joshua, confuso, perguntou: como saberei isso? E assim surgiu sua quinta lição: doação.

Então, de posse de mais um ensinamento, voltara àquele lugar, agradecendo ao curandeiro e seguindo adiante. Um pouco mais à frente encontrara uma nobre dama, com dois filhos e um cesto repleto de sementes. Sem vacilar, dirigiu-se à tal dama e lhe perguntara se precisava de alguma ajuda. A dama prontamente dissera: - sim, cavalheiro, é claro que quero sua ajuda. Necessito carregar este cesto de sementes até o outro lado daquela montanha. Joshua, em silêncio, pegara as sementes, colocara-as em sua cabeça e seguira montanha acima, montanha abaixo, até o lugar apontado por aquela nobre dama.

Mas, ao deixar as sementes, Joshua sentira-se estranho. Um cansaço muito diferente abateu suas forças e o seu coração. Joshua não se sentia em paz. Mas também não tinha certeza se, de fato, gostaria de continuar sua viagem. Então, retornara ao caminho tenso e surpreso, sentindo uma má sensação corporal e emocional. Decidira retornar de imediato ao pai, usando de suas últimas forças para isso. Fizera a sua sexta visita ao seu pai.

Antes mesmo de fazer sua pergunta, o pai indagou: "andaste um bocado fora de teu caminho, não foi?"  E o filho, surpreso, perguntou: - pai, como sabes que andei montanha afora, longe de meu caminho? E o sábio pai lhe respondeu:

- Porque, filho, somente se cansa, na caminhada da evolução, aqueles que perdem seu rumo. Então me ouça com atenção. Essa nobre dama o impediu de carregar suas sementes? Não. Recusaste um propósito alheio? Não. Usaste de tua vontade própria? Sim. Então eis a tua sexta lição: o livre arbítrio. Procuraste ou foste procurado? Procuraste. Foste ou não desviado de seu caminho? Sim. Entendeste que poderias fazer uso de teu livre arbítrio? Sim, mas isso poderia te gerar muito cansaço, uma lei secundária a essa estagnação ou atraso, porque, no universo, tudo está alinhado de forma perfeita e, nesta vida, tudo está contado no sagrado relógio do tempo e do espaço. O uso do livre-arbítrio, assim como o conhecimento de nossos propósitos, pode, por vezes, ser sábio. Mas outras vezes pode significar esforços cansativos.  

E, então, munido de tal resposta, Joshua retornara ao seu caminho e o seguira com maior retidão. Sabia que poderia ajudar a muitos, carregar poucos, curar alguns, cantar, se divertir, casar, ter filhos, envelhecer. E eis que surge uma nova dúvida: antes de deixar esta vida, como ensinar aqueles por quem deveria passar a nobre forma de evoluir?

Então, retornara ao seu pai pela sétima vez: como passar adiante as sete leis ou missões, a forma certa de evoluir? Então o pai respondeu: - filho livra-te de tudo aquilo que diz respeito a um propósito cego. Procura te nutrir de tudo aquilo que diz respeito a uma missão, porque o propósito cego é aquele baseado em uma vontade sem conhecimento e sem experiência. Mas a vontade munida de verdade e de experiência pode contrariar o destino, posto que contraria a sagrada lei da doação.


Então respondera ao seu filho: despoja-te de tudo aquilo que diz respeito à vaidade e encontrarás a fórmula certa para seguir com tua missão de evoluir. E, então Joshua fechara os olhos e fizera a sua passagem sentindo-se certo, sereno e seguro de que havia aprendido finalmente a evoluir.

Com essa estória, o Mestre quis lembrar que o destino coloca sempre o ser humano no lugar certo, na hora certa, no tempo exato. Os propósitos, a vontade de alcançar conhecimento, missão ou doação são as verdades que podem levá-lo ao correto caminho, à correta caminhada ou ao correto passo. Nesse sentido, lembra que Deus foi perfeito na sua forma de trabalhar a evolução. Porque colocou que o propósito da missão não é feito por ciclos, mas, sim, pelo caminho.

Nesse sentido, indaga: se perguntassem a Jesus, antes de sua vida pública, se gostaria de ser filho do Grande Senhor e ter de servir de exemplo, acham que Ele diria sim? E a Chico Xavier se gostaria de movimentar, ajudar e curar massas, deixando de lado todos e quaisquer prazeres da vida terrena? Acham que ele diria que sim? Certamente não.

Mas eles foram exemplos de seres humildes, que enfrentaram um propósito, não para si mesmos  e, sim, para outros e fizeram o que lhes estavam sendo solicitados. A Espiritualidade acontece quando crescemos, evoluímos e nos desenvolvemos através de um princípio único chamado de doação.

O Mestre considera mágico um ser humano agir pela vontade de escolher um bom caminho, seguir alimentado por sua sede e, nessa caminhada, achar um rio que alimenta a muitos com seus peixes, com suas plantas, com suas verdades e com seus valores, tudo isso sem saber ao início, que poderia fazer isso. Achar-se um curador, caminhar como um carregador e terminar seus dias como um bom pai, um bom filho, um bom cônjuge, um bom amigo.

Ele lembra que somos um pouco como Joshua, que, por um instante, um momento, sente-se perdido, cansado ou em dúvidas. Não é errado não saber para onde ir, para onde seguir, o que fazer. Mas é sempre certo doar-se, dando o melhor de si mesmo.

O Mestre pergunta: “pensam que grandes físicos, químicos ou matemáticos já sabiam, desde o berço, que seriam aqueles que muito contribuiriam para a humanidade? Não”.

Não seria cada um de nós, seres humanos, verdadeiro grão de areia, vistos pelo Grande Arquiteto do Universo? Cada um de nós, carregando suas verdades, cumpre com seus propósitos. Mas, assim como Joshua, acaba encontrando pelo caminho o propósito de outro.

Nesse sentido, o Mestre compara a nossa missão com a de uma flor, que deseja sair e mostrar-se a uma bela jovem, mas não pode se locomover. Deus estaria sendo injusto com esta flor? Estaria lhe dando vontade própria e um propósito também próprio, de entregar-se a alguém,  não lhe dado condição para mover-se. Então Ele pergunta: o que ela faz? Ele responde: cumpre com seu propósito. E qual é esse propósito? Deixa-se ser achada. Por quem? Por quem estiver pelo caminho, que tanto pode ser um pássaro, uma abelha, um ser humano. E ela seguirá com seu propósito, quando tiver por propósito a doação, não é mesmo? Trabalhar por si mesmo não constitui um propósito, porque não envolve doação.

Ele explica que não há caminho se ficarmos sentados, de olhos fechados, dizendo: ”me achem, eu não farei nada, me achem”. Cumprir com um propósito necessariamente deve ser com doação. A doação deve partir de uma retidão. Como Joshua, que recebeu um jarro d'água e um pedaço de pão, como forma de o Universo contribuir com sua verdade. Isso não é doação.Significa que plantar não é obrigatório, mas a colheita sim.

Para iniciar a sua jornada, é só seguir rumo ao norte, rumo às sete verdades do caminho. Quais são elas? Vontade, verdade, deixar-se ser achado, missão, propósito, doação e retidão.